Wednesday, July 18, 2007

Pitacos Renânicos

Sem dor nem pudor


Renan B. Fernandes


Caros leitores, hoje estou escrevendo com a mente nublada. Minha razão pode estar cegada pelo turbilhão de sentimentos que afloram; amanhã mesmo posso pedir que esqueçam tudo que escrevi. Mas preciso escrever, pois esses momentos emocionados não vêm sempre. E perdoem-me por esse assunto não ter nada a ver com o blog, mas penso ser de extrema importância.

Nesses dias, estive estudando a criminalidade. A cada ano, parece que casos mais assombrosos aparecem. Na verdade, isso se deve a dois fatores: o primeiro é o fato que a brutalidade está realmente aumentando; o segundo é que esquecemos tudo muito fácil. Porém, esse ano de 2007 parece um grande pesadelo. E 2008, certamente, vai ser um pesadelo ainda pior. A situação do Rio de Janeiro está cada vez mais insustentável; crianças são arrastadas pelas ruas até suas cabeças virarem farinha; pessoas são espancadas sem compaixão. Jovens atiram em dezenas nas Universidades. Pessoas são incendiadas...

Qualquer ser humano que possua um pingo de sangue nas veias vai se revoltar com tal situação. Os mais frios dirão que o homem é naturalmente mau, que a História nos mostra que sempre houve extrema violência. Os mais ponderados estudarão o ser humano e a sociedade e tentarão estabelecer causas para tamanha barbárie que ocorre diante de nossos olhos e não nos mobiliza a fazer nada.

A primeira causa disso tudo é nosso sistema. Podem falar o quanto quiser que esse assunto é velho e que sou um “ovinho de vermelho”, mas não sou comunista. Não sei o que sou. Só sei que nesse sistema em que vivemos, a última coisa a ser valorizada é o ser humano. Sim, o ser humano se transformou em coisa. Qualquer porcaria vale mais que ele: capital, conhecimento, técnica, desenvolvimento, papel, pneu de caminhão, gaiola de passarinho, antena de TV, taco de golf... Qualquer coisa vale mais que o ser humano.

E, assim, criamos o que apelidaram de competição. O Mundo competitivo de hoje, em que os mais bem preparados chegam lá e os outros vivem como podem, minou nossa compaixão. Todos são competidores, todos são ameaças a todos. E para que ter dó do mais fraco? As coisas funcionam assim, ele que vá estudar ou se preparar melhor. Ora essa, estamos falando de seres humanos e não de lixo! Cada pessoa tem sentimentos, e um sentimento de derrota, de humilhação pode ter conseqüências muito sérias para ela. Falo de competição na família, na escola e na sociedade em todos os seus níveis. Tudo é competição.

Os donos da verdade dirão que a natureza funciona assim, que “as coisas funcionam assim”. Quem são esses, assíduo leitor? Os neo-neo-deterministas sádicos? Se algo diferencia o ser humano do resto dos animais é o fato de ser livre, de poder escolher não seguir as regras da natureza. Não podemos voar, construímos aviões. Não podemos ver muito longe, construímos os telescópios. Se na natureza o mais fraco perde, mudemos isso. Chega dessa competição animal e cruel.

Aí então os donos da verdade dirão que é essa competição que leva ao nosso desenvolvimento. É mesmo, mas a que preço? Nunca pensei que diria isso (vocês me conhecem), mas qual o preço da civilização? Compensa construir naves-espaciais enquanto há pessoas sofrendo? Compensa desenvolver a ciência enquanto há tantos esquecidos? Não seria melhor um mundo onde desenvolvimento e humanidade pudessem se conciliar? Olhem através de suas janelas blindadas, enquanto assistem às suas TV´s de plasma, e vejam. Olhem bem e me digam: onde foi parar a compaixão? Foi assassinada pela competição. Valeu a pena? Não sei. Estou escrevendo esse artigo para questionar e não para fornecer respostas...

Nessa situação de competição se encaixam dois perfis. O primeiro é o do “favelado”. Já nasceu com a competição perdida, não possui um vislumbre de perspectiva de futuro. Não conhecem a nem a compaixão, nem um lar estruturado. São esquecidos pelo Estado e lembrados pelos hipócritas que se dizem engajados nas lutas sociais. É fácil falar isso de barriga cheia. Outros ainda preferem salvar baleias e pingüins. O Segundo perfil é o da pessoa que “pira” e sai atirando em todo mundo. É o caso do estudante Cho, onde também encontramos discriminação e patologia mental. Foi uma mistura explosiva que matou 32 pessoas. Pessoas que tinham pais, filhos, que eram amadas, que amavam.

Mas até agora falamos dos supostos “desfavorecidos”. Vamos deixá-los de lado, caro leitor, afinal são perdedores, loosers, não é mesmo?

E os bem-nascidos, de classe média alta, que possuem toda a perspectiva de futuro e os aparatos para ganhar a competição? Por que esses também botam fogo em índios, espancam pessoas, estupram sem dó nem piedade? O caso deles é diferente, mas a essência é a mesma. A possível explicação para esses fatos está num triângulo que compreende a ausência de limites, o relativismo ético e a crise da família.

A crise da família se dá por causa da destruição dos laços familiares. Famílias se fazem e desfazem do dia para a noite. Pais e mães não dão o necessário carinho e amor para os filhos porque tem que trabalhar demais, porque tem mais de uma família para cuidar. Há, entre filhos de um mesmo pai ou mãe com outro pai ou mãe, a competição por afeto e por dinheiro, ou seja, caímos na velha competitividade, onde a compaixão morre. E os pais, atarefados demais, não podem distribuir atenção para tanta gente.

Tal falta de afeto é compensada materialmente. O filhinho de papai ganha o que quer, quando quer. Faz o que quer, sem vigilância. Ou seja, não possui limites nem por parte dos pais, ausentes e complacentes, nem por parte do governo, que falha em combater os delitos. Hoje, o garoto faz o que quer, amanhã estará espancando e estuprando o quanto achar necessário.

A compensação material e a falta de convívio social (explicada por muitos fatores, inclusive a violência) fazem com que as pessoas cresçam em uma redoma de vidro. Não sabem diferenciar espaço público de espaço privado; não conseguem respeitar nem o coletivo nem o outro em sua individualidade. Aí vão tentar impor sua vontade por meios de gangues, pichação e afins.

O relativismo ético se dá por causa da crise de valores. Não há mais os grandes valores para nortear uma nação. Morreram todos os ideais e a ética foi relativizada sem pudor algum. “Eu pensei que ela era uma prostituta, então bati (porque eu acho que bater em prostituta é certo e ponto final).”

Percebam que esses jovens criados sem afeto, privados do convívio social, perdem a noção de tudo. Perdem a noção do valor de uma vida, de que as pessoas possuem outros que as amam e que vão sofrer com a sua perda. Vão batendo e não param mais.

Ou seja, nosso sistema é podre. A competição gera marginais humilhados e destrói a família. A própria violência gera meios para que ela própria cresça indefinidamente. Então, o que fazer nessa situação? Não sei. Sinceramente não sei. Às vezes penso que teremos que chegar ao fundo do poço para resgatarmos alguns valores. E precisamos resgatá-los, pois sociedade alguma se sustenta sem eles. Quanto a esse sistema desumano, penso deveríamos erradicá-lo de uma vez. Como faremos isso, não sei. Mas é necessário e urgente. O ser humano em primeiro lugar, sempre.

Espero ter conseguido expressar toda a minha angústia em relação aos fatos. É por isso que não modifiquei muita coisa no texto; se o corrigisse demais, ele iria perder o tom original, que é de indignação. Mas, como disse, esse artigo não espera fornecer respostas, mas fomentar questionamentos.

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